A admissão de uma carta psicografada em processo penal, embora plausível na perspectiva da busca da verdade real dos fatos, representa um risco de proporções alarmantes, visto que intenta legitimar uma fonte que por definição é completamente desconexa do único agente que poderia lhe dar causa, o de cujus, neste sentido, flertando com a fraude. Não se trata de discutir sobre o grau de aptidão da perícia grafotécnica para lhe atestar a autenticidade, pois, se já não há mais sujeito detentor dos direitos da personalidade a produzir-lhe, qualquer veredito estaria completamente tomado por vícios insanáveis, exceto se configurada sua elaboração anterior ao derradeiro instante. O que fica evidente nos casos em que tal modalidade fora admitida é a proeminência de valores inerentes à religiosidade em detrimento da verdade real, tanto por parte da magistratura, quanto da defensoria e não menos importante do júri - este, aliás, não isento de ser conduzido como marionete nas mãos de operadores hábeis. Não que devêssemos resisti-la pelo simples prazer de negar o direito a quem legitimamente o busque, o desafio é que, pela natureza da prova, para que a aceitação se desse em respeito à Justiça seria preciso sua disciplina por mecanismos que, além de atestarem as propriedades mínimas que a prova lícita deva ostentar, delimitem a extensão dos direitos da personalidade do real autor de tais provas, visto que, só o sujeito que ainda detivesse alguns direitos poderia se manifestar validamente sobre os temas que tenham lhe dito respeito em vida. Nesta hipótese, se o Direito chegasse a reconhecer que a morte é, na realidade, uma passagem para outro plano de existência, então estariam abertas possibilidades revolucionárias no campo de produção da prova processual, quem sabe até, com admissão da prova testemunhal em primeira mão, a oitiva genuína, por parte da própria vítima falecida, servindo para inocentar ou, conforme o caso, condenar o réu. Mas, enquanto esta revolução não acontece, devemos nos ater aos fatos, dentre os quais, se sobressai o de que, sem ser portador do fôlego que caracteriza a vida, quaisquer manifestações posteriores em nome do sujeito não passam de obra de ficção, a despeito da qualidade da grafia, da verossimilhança contextual revelada pelo escrito ou das credenciais do pretenso mediador da obra. Por outro lado, não convém ignorarmos que, àquele que precisa desesperadamente de algum lenitivo no curso do processo, poder contar com o apoio do além túmulo é recurso que funciona à semelhança do jogo virtualmente perdido, cuja virada poderá ser conseguida a partir de um trunfo guardado na manga.
Carta psicografada em processo é questionável
Ariovaldo Esgoti
10/05/2013